Começo a voar, nesta folha em branco. Ao certo, ainda eu, sou uma folha em branco, já vi uns rabiscos no canto superior direito da folha. Claro está, está certíssimo já tenho quase 30 anos, é bom que já apareça alguma coisa, um risco, uma ruga. Pois é pessoal, atiro-me aqui, completamente aos vossos pés. Um desejo antigo de escrever e de partilhar o que me vai nesta alma. Não farei promessas, logo veremos, o que o céu nos reserva. Não esta muito vento, portanto a descolagem vai ser suave.
sábado, 22 de setembro de 2007
A OUTRA
A outra quando beija, deixa um pouco de si. O seu cheiro, o seu calor, o seu ar. A outra tem o corpo bem definido, não é perfeição mas é uma visão.
A outra espera pelo toque do telefone. São uma da tarde, combinaram almoçar juntos, num restaurante qualquer, bom mas discreto. Ele liga a dizer que está a chegar. Espera que a outra, o receba com aquele sorriso que ele tanto gosta. Chegam ao restaurante, ele puxa a cadeira, ela senta-se. Ele pergunta o que a outra quer comer e sugere um vinho. A outra agradece as flores que ele enviou. Orquídeas as suas preferidas.
A outra diz-lhe que tem bilhetes para a peça de teatro. Ele responde que vai. Ele fala-lhe de um fim-de-semana em Paris. E a outra aceita. Acabam o almoço ele despede-se dela com um beijo apaixonado.
Ela prepara-lhe o jantar e deita os miúdos. Ele chega a casa e diz que tem de sair para uma reunião. Precisa que ela lhe prepare aquela camisa que ele tanto gosta, enquanto toma um duche rápido. Ela ajusta-lhe a gravata, alinha-lhe o casaco. Ele comunica-lhe que vai ter de ir a França no fim-de-semana, precisa que ela lhe prepare a mala. Durante o jantar, ela informa-o que os miúdos estão bem, que já dormem. Que tem uma reunião na escola para a semana e que o mais velho vai inscrever-se no futebol. Ele beija-lhe a testa e deseja-lhe boa noite. Ela fica a porta a vê-lo sair.
Ele chega, a outra já está a espera dele. Cumprimentam-se com um beijo fugaz, ele olha-a deslumbrado e ela cora. A outra olha-o. A camisa impecavelmente engomada, o nó da gravata perfeito. Vão ver a peça juntos, vão beber um copo juntos. No final da noite e depois de uma passagem rápida pela casa da outra, ele volta para casa sozinho.
Ele chega a casa deita-se ao lado dela, ela aconchega-se nele e beija-o, sente um outro perfume. Cerra os olhos e volta adormecer.
Pela manhã ele acorda primeiro, prepara o café que tomam juntos todos os dias. Falam do que cada um vai fazer durante o dia. Ele vai preparar-se para o trabalho, ela vai preparar os miúdos para a escola.
Ele ajuda os miúdos no carro, volta a casa e beija-a deseja-lhe um bom dia e diz-lhe que a ama. Ela sorri, sabe que é verdade.
São uma da tarde e a outra aguarda a chamada dele.
A outra sabe que ele tem ela. Ela sabe que ele tem a outra. A outra quer ser a ela dele e ela quer ser a outra dele.
Num mundo perfeito a outra e ela seriam uma pessoa só. No mundo real existem ilhas perfeitas.
terça-feira, 18 de setembro de 2007
José Afonso
Quinta-feira a noite, vou para a “borga” dançar e conviver com bons amigos. Acabada a noite e a despedida do pessoal, encaminho-me para o meu carro. Abro a porta, entro e ligo o carro. Olho para o vidro e vejo uns papéis. Só pelo facto de não querer ter o azar de chover e estes se colarem ao vidro resolvi sair e retira-los. Não gosto de deitar papéis no chão, atiro-os para o banco do lado e lá vou eu.
Ao chegar à casa, olho para os papéis e percebo que não é mais um dos muitos bilhetinhos com números de telefones ou mensagens, mas sim uns bilhetes de uma estreia. Reparo na data e já passou, reviro os bilhetes e encontro um nome. O nome do dono dos bilhetes e mais nada, nem uma mensagem, nem um número. Só informação cultural.
Estranho penso eu. E mais estranho é alguém decidir fazer do meu carro seu caixote do lixo. Enfim decidi não pensar nisso, mas deixei os bilhetes em cima da mesa.
Sexta-feira depois das lides profissionais, fiquei com a tarde livre. Vou para a baixa de Lisboa. Adoro a baixa, Lisboa vive-se ali. Nas ruelas, nos passeios, nas praças, nas Igrejas escondidas, nos botecos. Nos turistas de rua, nas Marias, nas Madalenas, nos Zés, nos Quins e em mim. Faço o roteiro do costume e dirijo-me para Belém. Passeio pelos jardins, vou beijar o rio e cruzo o olhar com o Centro Cultural de Belém. Este pisca-me o olho, já lhe devo uma visita há algum tempo.
Entro na recepção e pergunto pelo Museu da Colecção Berardo. Pergunto se a entrada é paga, respondem que não. E eu sorrio e mando cumprimentos ao “tio” Joe.
E agora podia armar-me aqui em intelectual e tal, que entendo muito de arte e tal. Mas não, fui realizar um desejo, adoro o surrealismo e ali estão, não as melhores obras, apenas algumas representativas.
A meu ver Dali é o Tal e dele apenas uma obra e nem era um quadro. De resto o Surrealismo é assim mesmo uma linha, um objecto deformado, uma névoa e o seu significado passa a ter outra dimensão. É muito interessante ver o que para um, é definido como uma tarde solarenga e no mundo real ou não, é apenas um peixe num prato.
Adorei a exposição, fiquei espantada pela sua organização, pelas obras apresentadas e pela sua “ magia”. Surrealismo “rules”.
Retirei-me do Museu um pouco mais rica. O tio Joe pagou o bilhete e afinal de contas a arte é de todos, logo aquele quadro de Picasso também é meu.
De saída encaro com uma placa onde apresentam a primeira apresentação pública de uma nova orquestra, a Orquestra de Câmara Portuguesa, fundada e dirigida por Pedro Carneiro. Fez se luz, os bilhetes deixados no meu carro eram os da estreia. Já usados obviamente.
Fiquei a pensar, se teriam sido os bilhetes a levarem-me ali. Que estes tivessem influenciado a minha tarde. Afinal com tanto sítio para passar a tarde, dou por mim no CCB, a ver uma exposição sobre o surrealismo, quando podia estar assistir uma sessão de treinos do Sporting. Enfim uma situação digna deste movimento. Decidi ir comer pastéis de Belém.
Querem mais surreal que isto: uma tarde em Lisboa, uma exposição surreal, uns bilhetes usados e pastéis de nata. Misturem tudo e "voilá". Não temos artista mas temos concerteza mote para um bom quadro servido a moda de Dali ou Cesariny.
P.S. – E já agora obrigada José Afonso, queira por favor deixar para a próxima bilhetes válidos. E dois.
sábado, 1 de setembro de 2007
Enquanto dormes
Lembrei-me da Ana, ela ama tanto o namorado, mas também ele dorme. Penso na Carla ela ama tanto o marido, mas também ele dorme. Penso em mim e eu amo-o tanto mas ele também dorme.
Foram envenenados com a confiança, de nós ter ali ao lado. Acordam de leve a meio da noite, esticam o braço, sentem a nossa pele e voltam adormecer.
Sentamo-nos a mesa, ele come e eu olho para ele. Pergunto-lhe como correu dia, se gostou da minha surpresa, se gosta de mim. E ele automaticamente responde a tudo que sim. Olho bem e reparo que afinal ele dorme.
Entramos no quarto, abraça-me, aperta-me e eu sei o que ele quer. Fazemos amor!? Não. É sexo, porque olho para ele e ele dorme.
Levantamo-nos pela manhã, é domingo. Digo-lhe que quero ir até a praia. A esta hora ainda está bom para passear. Ele diz que sim.
Avançamos pelo areal. Enterro os pés na areia molhada e gelada. Respiro fundo, o vento brinca com o meu cabelo e recordo um dia, uma tarde, uma noite em que fui feliz. Abraça-me como se conseguisse ler os meus pensamentos. Fico com medo, mas afinal não, é só um abraço. Um abraço frio, porque ele dorme.
Enquanto eles dormem, nós sonhamos, com homens de carne e osso que sentem medo, que choram, que sofrem, que vivem, que pretendem, que se atiram, que se excitam, que ambicionam.
Enquanto ele dorme a vida avança. A minha, a da Ana, a da Carla. Enquanto eles dormem, nós acordadas vemos o mundo e desejamos e lutamos, por alguém acordado, por alguém que nunca durma. Porque precisamos de quem nos vele o sono.